sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O Encontro

       Ela se aproximava lentamente do espelho, e tocava-o com os dedos. Ali, naquela face refletida, não demorariam a aparecer os sinais dos longos dias que passara. Lembrou-se de seus ideais da infância, dos sonhos, da escola. Às vezes se perguntava se aquela nitidez das lembranças de tantos anos atrás seria algo comum, pois quase podia sentir o 'cheiro' daqueles momentos. Passaram-se a adolescência, o primeiro beijo, as paixões avalassadoras. Lágrimas, sorrisos, momentos que se apoiavam na falsa certeza de que nada daquilo ficaria um dia só mesmo na memória. Encontros, desencontros, eram lembranças perfeitamente claras naquela mente que não acreditava na perfeição. Apertava com força seu rosto, como se as lágrimas pudessem ser contidas por meio daquele gesto. Havia em si algo que não conseguia identificar, algo que a transformara, algo que a isolara do mundo habitado por pessoas normais, que nasciam, cresciam, se casavam, reproduziam e morriam... Solidão, nada mais queria, nada mais suportava, e também não conseguia entender a complexidade sob a qual se desenvolvera e se encontrava.  Era madrugada, e um leve ruído do vento tocando as folhas das árvores a trazia de volta à realidade.

     O reflexo de seus olhos castanhos pareciam puní-la pela dor a qual se sujeitava naquele momento. Sim, os olhos... Estes pareciam trazer em si cada detalhe daquele universo tão insignificante ao mundo, e tão revolucionário em si. Observava cada traço, cada movimento daquele corpo que tantas vezes fora classificado como vazio e desprovido de sentimentos. Tantas vezes sofrera desesperadamente por dentro, e nada além de um sorriso deixara transparecer. Quantas vezes vista como dura e cruel, enquanto um coração ali se despedaçava antecipadamente pelo menos de ferir ou ser ferido. Outrora arrancara lágrimas que nunca saberia se foram reais, além das frases que nunca foram pronunciadas enquanto ressoavam a todo momento em seu subconsciente. Em frente ao espelho, chegava a ser assustadora a idéia de quantos sentimentos distintos já haviam sido cultivados, adormecidos e banidos daquele corpo. Sentia-se vazia, como se nada mais pudesse ofertar. Ou não... Talvez aquele sentimento nada mais fosse que um acúmulo de paixões não direcionadas a ninguém. Na sua busca pela independência, caminhara, e chegara até ali, embora não soubesse bem onde estava, quanto demoraria para alcançar a chegada, e o pior, ignorava também o que queria. Seu trabalho, seus estudos, e a idéia de uma gravidez independente lhe acompanharam durante longos anos. Nada além de si, nada além de sua família.

Trocara a palavra 'sonho' por 'objetivos'. A palavra 'esperança' lhe soava cômoda, provavelmente por que lembrava-lhe 'esperar'. O lema que se baseava em luta, em perseverança e determinação naquele momento lhe causava angústia. Sabia que seu orgulho jamais lhe permitira a crença em destino, ou em qualquer coisa que pudesse lhe arrancar o controle de sua própria existência. E era, naquele momento, nisso que pensava:
O que estava fazendo de sua vida?

     Seu olhar desesperançoso percorria o quarto vazio, a casa vazia. Havia o silêncio que lhe bastara por tanto tempo, mas sentia agora a falta de algo que por mais que tentasse não conseguia definir exatamente o que era. Ela poderia ter alguém ali, mas 'alguém' não era o bastante. Lamentava por não sentir sequer saudade, ou ter na memória uma pessoa que lhe viesse instantaneamente nos momentos de solidão. Havia  a saudade do que não se viveu, do que não se sentiu, do que saberia que não poderia viver, não naquele momento, e provavelmente não seria vivido também em momentos próximos. Sua respiração doía, e ainda assim tentava conter-se diante da angústia da qual  o maço de cigarros na gaveta não poderia livrá-la.

    Quisera naquele momento materializar-se, sentir-se viva em uma caminhada sem rumo. Queria sentir ódio, amor, paixão ou ira, algo que fizesse seu coração arder, ainda que se queimasse. Ou sentir o arrepio da pele ao caminhar na chuva em contato com o vento. Naqueles olhos refletidos no espelho, desvendava aos poucos aquilo que lhe feria. Desesperadamente precisava sentir, viver e deixar por algum tempo suas vidas nas mãos daquele desconhecido a quem tanto desprezara, o destino. Notara nas linhas finas que apareciam em seu rosto que toda aquela insistência em controlar-se e impedir-se de se entregar às supostas ilusões que a vida lhe oferecia deveria ceder lugar à leveza de quem um dia seria esquecida, sem testemunhas daquele momento em que sua história refletia-se em um espelho na madrugada. Tocava então os seus braços, o pulso, na ânsia de convencer-se da vida que estava ali, lhe aguardando para que fizesse algo para sobreviver àquela noite. Seu corpo encontrava-se dolorido, e a dormência nas perdas lembrou-a de que estivera ali por mais tempo do que imaginara. Lentamente levantou-se, e ao abrir as cortinas, notou que uma expressão nova se formava em sua face, em um esboço de sorriso. No espelho, o reflexo da claridade que passava pela janela, e um suspiro involuntário de quem recomeça um novo dia se sobressaiu. A madrugada que passara em frente ao espelho possibilitara algo que até então, em tantas fases de sua vida, não havia vivido. Conhecer-se, ir além das expectativas dos olhos que a observavam ao longo do dia, permitir-se chorar dores que se escondiam sob a imagem de um mulher que se sobrepunha a qualquer obstáculo e enganava-se durante todo o tempo com uma ilusão de imortalidade. Tantos conceitos formados sobre si, tantas de suas atitudes analisadas, seus traços observados, elogios, críticas, a insanidade do mundo real onde sua vida se esgotava dia a dia lhe haviam distraído, e sua atenção voltara-se para o todo enquanto o mais importante ainda não havia sido feito.

Naquela noite pudera, em um momento íntimo e quase secreto,dentre lágrimas, soluços e lembranças, encontrar a si mesma.